Imagine um organismo unicelular em repouso; uma cultura de bactérias descansando sobre uma placa de Petri; um lagarto à espreita de sua presa sob a pedra; uma águia em observação, com as garras atracadas à superfície rochosa de uma montanha. À parte traços peculiares a cada espécie, todos esses seres mantêm uma característica em comum: a necessidade de um gasto energético mínimo para sua sobrevivência.
Trata-se da Taxa de Metabolismo Basal, cálculo desenvolvido pelos cientistas estadunidenses James Francis Harris e Francis Gano Benedict em 1919. Utilizada até hoje, a equação define o limiar energético que coloca um organismo entre a vida e a morte.
Se chegou até aqui, você deve estar se perguntando o que isso tem a ver com planos de saúde, não é mesmo? Calma! A resposta é mais simples do que se imagina e será revelada a seguir.
O “metabolismo basal” de um plano de saúde é constituído por seus gastos primordiais — em resumo, é a quantidade de recursos necessária para que o empreendimento mantenha-se viável (ou “sobreviva”, por assim dizer).
Segundo a Agência Nacional de Saúde (ANS), atualmente, 85% dos gastos “metabólicos” de uma operadora em saúde são destinados à cobertura de custos em sinistralidade. Isso significa que quase a totalidade do faturamento das empresas é revertida no pagamento de procedimentos, consultas, internações e outros serviços aos beneficiários.
Como, então, tornar a saúde suplementar um negócio viável? Eis a questão que tentaremos responder nas próximas linhas. Acompanhe!
Mecanismos de regulação em planos de saúde: a Navalha de Occam no atendimento aos pacientes?
“Autorizar ou não autorizar?” Essa é a pergunta primordial que permeia o dia a dia das operadoras de saúde. Atualmente, as empresas se enveredam por dois caminhos:
- ou se aprova procedimentos em excesso, resultando no gasto exorbitante com sinistros e atendimentos em saúde — tornando, assim, o negócio inviável;
- ou se restringe procedimentos em excesso, instigando a ira de usuários e sanções de órgãos reguladores como o Ministério Público, o Poder Judiciário e a própria ANS. O resultando é o mesmo: multas e penalidades administrativas que, por fim, também levam a operadora à bancarrota.
A dicotomia exposta acima remete à Navalha de Occam, proposição filosófica que estabelece que a explicação para fenômenos deve assumir a menor quantidade de premissas possível. Em resumo: “ou se faz isso, ou se faz aquilo”. Regidas sob essa égide, as operadoras de saúde estarão eternamente fadadas a se situar no meio, ou seja, “entre a cruz e a caldeirinha”.
Entretanto, a simplicidade de processos nem sempre é o melhor caminho a ser seguido. É preciso olhar para além das alternativas comumente aplicadas pelas empresas, focando não só no bem-estar da sociedade, mas também na sustentabilidade do negócio de gestão em saúde.
Coparticipação e franquia: duas faces de uma (injusta) moeda
Antes de tratarmos uma possível solução que otimize a gestão dos planos de saúde, avalie os principais métodos de regulação utilizados pelas operadoras:
Coparticipação
Nesse modelo, o beneficiário paga uma taxa mensal, traduzida na forma de uma subscrição ou mensalidade. A esse valor é complementada toda sorte de serviços médicos, assistenciais ou odontológicos realizados durante a assinatura do plano. A coparticipação pode ser baseada em um número fixo por ticket do evento requisitado ou se apoiar sobre um percentual do valor daquele evento.
Imagine Maria, assinante de um plano de saúde, cuja coparticipação estipula o pagamento de 40% do valor da consulta. Maria precisa fazer um procedimento odontológico de emergência, avaliado em R$ 250. Seguida as regras do plano, caberá a ela desembolsar R$ 100 do valor da consulta para que seja atendida e o procedimento realizado.
Em resumo, o objetivo do modelo de coparticipação é promover uma moderação na apresentação de demandas por parte do usuário. Trata-se, então, de uma adaptação à cultura de uso à revelia do plano de saúde, que se tornou a norma no Brasil: “eu pago pelo serviço, portanto vou usá-lo”.
Ao exigir uma fatia do orçamento por parte do usuário, o modelo coparticipativo atua como disciplinador pedagógico do comportamento desse cliente, visando a redução nos índices de sinistralidade do plano.
Afinal, a coparticipação implica uma regulação justa dos serviços de saúde? Busquemos na história de Maria a resposta para a questão. Imagine duas hipóteses:
- Maria trabalha como empacotadeira no supermercado de seu bairro. Sua renda mensal é de R$ 700, e seu orçamento inclui despesas com alimentação, material escolar para os filhos e necessidades básicas do lar. Surpreendida com o problema dentário, ela se vê obrigada a gastar um sétimo de sua receita para custear o tratamento. Assumir o baque nas contas ou conviver com a dor de dente o máximo possível? Cabe a Maria fazer a difícil escolha.
- Maria é uma bem-sucedida advogada tributária. Trabalha para uma grande firma em sua cidade e sua renda mensal ultrapassa 10 salários mínimos. As despesas do lar são divididas com o marido, que também recebe vultosas quantias por seu trabalho. Para essa Maria, os gastos com o procedimento dentário não impactam o orçamento.
Dois cenários completamente distintos, submetidos a uma mesma regra. Aqui reside a falácia e a injustiça do sistema de coparticipação dos planos de saúde. Ao exigir uma fatia compartilhada dos custos de seus beneficiários, operadoras assumem que todos os usuários partem de um mesmo patamar social — o que não é verdade, especialmente no Brasil.
Para indivíduos de menor renda, a coparticipação pode ser um fator que compromete o acesso à assistência em saúde. Para pessoas com maior renda, essa é uma estratégia que não afeta em nada, uma vez que elas têm dinheiro para se submeter à “regra disciplinadora” do plano.
Franquia
Prevista pela legislação desde 1998, mas implementada pela ANS somente em 2018, a franquia se assemelha à coparticipação em aplicabilidade e objetivos. A diferença é a definição de um valor fixo a ser pago pelo usuário dos planos de saúde.
Até determinado valor da despesa assistencial, cabe ao usuário arcar pelos procedimentos. O plano só assume os custos a partir da franquia. Se o plano de Maria prevê uma franquia de R$ 500 por mês, cabe a ela custear suas despesas em saúde até que esse patamar seja alcançado, com a operadora se responsabilizando pelos gastos excedentes.
Os dois modelos — de coparticipação e franquia — não trazem em si uma ideia de justiça, pois não implicam preocupação em relação ao acesso à saúde. Ambos são obstáculos financeiros que o usuário precisa vencer para produzir sinistralidade junto ao plano. Em um sistema mutualista, no qual muitos pagam para poucos usarem, o poder aquisitivo não deveria ser uma condição determinante do acesso à saúde.
Regulação médica em saúde: seria essa a solução?
Voltemos à analogia com o metabolismo basal: tal qual os organismos vivos, empresas do setor de saúde suplementar necessitam de um gasto mínimo para sua sobrevivência. Como então regular esse “metabolismo”, sem que se “queime recursos” em excesso ou negligencie sua base de beneficiários?
Em meio a um universo de injustiças, a regulação médica resulta, sim, em uma forma mais justa de gestão em saúde. Trata-se de uma relação de custo-benefício, um acordo justo entre a operadora e seu beneficiário. Além de quesitos médicos, eventuais demandas levam em conta elementos sociais, etários e ambientais de cada paciente. Não basta avaliar o paciente para, então, negar ou autorizar o procedimento.
De fato, a multiplicidade de fatores envolvidos em uma avaliação eficiente de usuários implica um sistema difícil de ser colocado em prática. Isso faz com que o método seja pouco usado pelas operadoras nacionais. Mas existe, enfim, uma solução para o problema? É o que discutiremos na última parte deste post.
Como aplicar a regulação médica: a tecnologia como aliada na promoção à saúde
Aplicadas às operadoras, as novas tecnologias podem ser grandes aliadas no acesso justo e democrático aos serviços de saúde. Confira 3 ferramentas que podem ser utilizadas para melhor implementação da regulação médica:
Internet das Coisas (IoT)
A conexão entre máquinas e objetos conectados à internet pode ser utilizada no acompanhamento a par e passo das condições de saúde de um indivíduo.
Se associados a aplicativos desenvolvidos pelas operadoras, esses dispositivos possibilitam o monitoramento remoto do status de saúde de sua base de usuários. Além de proporcionar uma ficha atualizada sobre esse cliente — possibilitando uma decisão acertada no acesso à saúde —, a IoT permite que os planos estabeleçam uma cultura de promoção à saúde em sua base.
Graças aos dispositivos de monitoramento, é possível informar o indivíduo sobre sua situação atual e educá-lo com dicas que promovam o engajamento em hábitos saudáveis.
Ciência de dados (Big Data)
Uma vez coletados, os dados dos usuários passam a integrar uma rica base de informações, que pode ser utilizada pelas operadoras no aprimoramento de serviços e políticas de saúde.
Por meio do Big Data, empresas são capazes de realizar uma gestão mais adequada e organizada de sua base, fechando eventuais gaps e problemas recorrentes entre os beneficiários. É possível avaliar, por exemplo, quais faixas etárias estão mais suscetíveis a doenças graves e quais regiões apresentam maior índice de sinistralidade para determinado procedimento.
Uma política apoiada na ciência de dados não só facilita a regulação médica, como oferece aos usuários a possibilidade de pagarem menos por seus planos, conforme vão adotando práticas que resultem em um histórico de saúde positivo. Além de trazer competitividade à empresa, a estratégia proporciona redução de gastos em sinistralidade e atratividade para novos clientes.
Compartilhamento de informações (Crowdsourcing)
Associado à automação e à inteligência artificial, o crowdsourcing possibilita a criação de modelos compartilhados de geração e aplicação de conhecimento técnico especializado.
Graças ao livre compartilhamento de informações, hoje, é possível gerar a capacidade de regulação técnica para um sem número de planos de saúde — até mesmo para as pequenas operadoras, que não teriam condição de prover essa regulação de outra forma.
Portanto, essa economia colaborativa pode fazer com que se coloque recursos técnicos, médicos e especializados à disposição de planos de saúde menos aparelhados — que podem aplicá-los em sua demanda de regulação. Estamos, portanto, um passo mais próximos de uma promoção justa em saúde.
Gostou do post? Quer se manter atualizado sobre o universo da gestão em saúde? Siga a Infoway no Facebook e LinkedIn e se mantenha a par das últimas tendências do mercado!